Pular para o conteúdo principal

Uma conversa sobre Tradição





Coreto da praça - Sales Oliveira - SP


 à Débora Rocha, amiga querida e professora admirável


Em mais um outro dia, em conversa com uma de minhas amigas, um assunto que sempre surge é o ofício de ser professor. Para além de sê-lo, há ainda a diferença apontada por Norma Telles no artigo dela “Autor+a”, no livro organizado por José Luis Jobim, o Palavras da Crítica de 1992. Ora, o que tem a ver um livro que trata das “Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura” com o ofício de ser professor+a?

Espero e desejo que, diferentemente das cabeças maquinárias programadas para pensar e escrever um texto dissertativo argumentativo modelo Enem, eu consiga fugir desse padrão. Entendam: é muito, muito, muito (mas muito mesmo) difícil fugir de uma fórmula para executar qualquer tipo de atividade. A redação de qualquer tipo textual não foge à regra. Talvez o exemplo mais fácil para ilustrar o que eu digo seja uma metáfora besta, que há muitos anos, serpenteia os caminhos do conhecimento que tento, todos os dias, vincar para impedir que sejam tomados por plantas nativas e ervas daninhas que tendem a fechar uma vereda quando essa não é mais atravessada.

Uma mulher, depois dos vários anos enquanto menina, vivendo com a mãe e pegando, de vista, todos as minúcias do preparo de pratos para o pai, aprendendo como cuidar da casa e deixar tudo em ordem, casa-se. Nesta nova vida, finalmente entende o conceito de jornada dupla de trabalho. Mas não é isso que vem ao caso, no momento. Num domingo, ela convida a mãe e o pai para um almoço, vai preparar o peixe e assá-lo. Talvez essa seja uma tentativa (inconsciente?) de mostrar que cresceu e é dona de si. Chegam por volta das 10 horas da manhã, nesse mesmo horário ela já está com a casa pronta para as visitas e tranquiliza a mãe dizendo que ela fique na sala porque nesse dia, ela quem vai cuidar de tudo. Passaram-se horas e o almoço ficou pronto. Na hora de servi-lo a filha põe a mesa e serve as duas travessas de peixe. Todos, aparentemente, se assustam. Até perceberem que em uma forma estava a cabeça do peixe e na outra forma, com folga, o corpo que parecia mirrado devido ao tamanho da forma. A mãe, sem entender o que fizera de errado ao ensinar a filha a cozinhar, questiona o porquê. E a filha confessa que nunca entendeu, de fato, o motivo de a mãe separar a cabeça do peixe. Ao passo que ela responde: “Eu só não tinha uma forma que coubesse”.

Ou seja: quem é que questiona o que é tradição? E é isso o que eu faço aqui, hoje. Pela dificuldade de fugir à regra temos, frequentemente, aceitado opiniões, dicas, macetes e, para além disso, comprado cursos e assistido a vídeos e palestras sobre “Como tirar mil no Enem”. Vou te contar: eu e tantas outras professoras e professores passamos, em média, quatro anos na universidade e, sinceridade?, não conseguiríamos tirar mil na redação do Enem. Significa que não somos bons? Significa que não sabemos de texto, de gramática, de literatura, de redação? Bom, acho que a resposta a essas perguntas vocês, alunos, conseguem responder sem tutor. Agora se hoje, nós professoras e professores, “sofremos” com a precarização do ensino não somente da Língua Portuguesa, mas também de diversas áreas “das humanas”, não é porque somos considerados uma “tradição” mas, sim, por nunca termos sido considerados como referência de saber. O povo, corriqueiramente, não acha que a língua que falamos seja ciência. Isso, ci-ên-ci-a. Como podem, afinal, tantas pessoas chegarem para conversar conosco, formadas em Letras, dizerem: “ai, com você vou até tomar cuidado, né, pra falar tudo certinho, porque você é conhecedora”, se, provavelmente, essas mesmas pessoas fomentam a carreira de instrutores, recém-egressos do Ensino Médio, de “Redação Modelo Enem nota Mil”?

A questão é, nós temos a fama, entretanto somos, todos os dias, descredibilizadas e descredibilizados na nossa profissão. No nosso OFÍCIO! Daí vocês poderão me perguntar: “Significa que, mesmo eu tento tirado 800 (ou qualquer pontuação acima disso, até mil), na redação do Enem, eu não posso ensinar? Se eu consegui essa nota é porque eu sei!” e eu te responderei, quantas vezes forem necessárias, “sim, significa”. É ótimo que você tenha aprendido a escrever, mesmo que seguindo uma fórmula da qual eu, particularmente, sou absolutamente contra, porque, se nunca me ouviu dizer isso, escrever uma redação não é uma receita! Seguir receitas não faz do cozinheiro um “máster” chefe. Só faz dele um bom repetidor e não um excelente cozinheiro.

Agora, voltando lá no início ou, como queiram chamar “tese”: tratar das “Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura” com o ofício de ser professor+a é relacional porque a vogal “a” marca a diferenciação de gênero. E isso implica no fato de que, mesmo que um professor e uma professora sofram a desvalorização inerente à nossa classe no Brasil, tendo de trabalhar em mais de duas (talvez três, quatro...) escolas para receber um salário proporcional ao seu trabalho de, não sei, R$ 3.000,00 mais benefícios e viver minimamente bem, como o modelo tradicional de capitalismo propõe, a professora irá receber menos e das duas uma: a) ela vai precisar exercer dupla jornada de trabalho, fazendo tudo o que ela e a família dela precisa, trabalhando nas escolas e em casa; ou b) ela vai pôr alguém pra trabalhar na casa dela, que provavelmente será uma mulher[1] negra, com pouca escolaridade e oriunda de uma família de baixa renda, para cuidar das coisas dela (sem dizer dos filhos) e, invariavelmente, tirar a possibilidade de essa mulher ter acesso a uma formação profissional, de ter acesso à educação e, assim, contribuir estruturalmente para a manutenção de um sistema que precisa da desigualdade para existir.

Assistir Grey’s Anatomy não te faz médico. Suits não te faz advogado e CSI não te torna perito criminal. Ser professora vai muito, mas muitíssimo, mais além da nota que você quer tirar no Enem. Tirar nota boa em prova só te faz bom aluno.

Bons estudos!

13 de abril de 2021 

Isabella dos Santos Lima é professora.

Isabella Lima é revisora.

Isali é escritora, poeta e contista.

E todas elas compõem uma mulher que não se acha coisa nenhuma.



[1] Conf. Quem são as empregadas domésticas no Brasil? Renata Vilela, 2019. Disponível em: https://recontaai.com.br/quem-sao-as-empregadas-domesticas-no-brasil/. Acesso em: 13 abr. 2021.

Comentários

  1. Que texto incrível! Isabella, você soube colocar em palavras escritas todo o sentimento, verdade e realidade de nós professores. Obrigada por isso!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. <3 Obrigada! Eu nunca sei como agradecer, mas fico extremamente feliz em saber que tantas conversas nossas conseguiram gerar alguma coisa útil.

      Excluir
  2. MARAVILHOSA! Texto extremamente necessário, amei demais da conta.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, amiga! <3 Você é incrível! Obrigada por me apoiar e, sobretudo, fico contente de esse texto te alcançar!

      Excluir
  3. perfeita. texto absolutamente necessário. que honra ter você por perto <3

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vic, te amo! obrigada por me acompanhar <3 a honra é toda minha!

      Excluir
  4. perfeita. texto absolutamente necessário. que honra ter você por perto <3

    ResponderExcluir
  5. eu aqui boba, lendo cada linha desse texto e balançando a cabeça como quem concorda com cada trechinho!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, amiga! Eu fico imensamente feliz de ir ao encontro do que você pensa <3

      Excluir
  6. Excepcional!
    Sou sua fã e tenho um" baita"orgulho de você. Que texto maravilhoso.(E cá entre nós, o gancho do início, posso solicitar créditos.😂)

    ResponderExcluir
  7. Excelente texto, Isa. Além de necessária sua reflexão, toca em todos os pontos centrais e críticos pra profissão do professor. Muito obrigado por seu texto. Que honra!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Mateus! Cê é um querido demais e fico muitíssimo contente de esse texto ter te tocado. A honra é todinha minha <3

      Excluir
  8. Casino of the East Windsor Hotel & Casino - Mapyro
    Search 경산 출장샵 for the cheapest and quickest way 광명 출장마사지 to find Casino 목포 출장마사지 of the East Windsor 김천 출장마사지 Hotel & Casino in Windsor. We have the cheapest 춘천 출장샵 hotel rates for your

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O Cheiro da Roupa

O mundo louco Em que a camiseta emprestada  Devolvi As encomendas na sua casa Já estavam aqui E sem cálculo Talvez você não acredite No dia em que te vi por último Te abracei quase que sem querer Você foi, seu perfume ficou  Enquanto contava a um amigo Dizia sobre as suas maravilhas Sentia teu cheiro em minha roupa E o desfiz  Com o isqueiro Usei daqueles banhados em eugenol Abri o vinho que dediquei a nós E cai em sono, sem sonho

Reflexões literárias e inclusão de caraminholas na cabeça de Nêmesis

  é preciso que se ouça o que seu corpo transpira. Faz calor. Não importa quantos, basta que saiba que isto aí também é poesia que em sua verdadeira cara não cheira à fruta mais fina não acessa merda nenhuma de Feira de Bologna. Como posso ir à Itália se meu texto emprega o cheiro mais humano possível? Suo e minha cara prega oleosamente e critico quem sequer pronuncia ÊC-frase na mais ortopédica forma. Num esforço inutilíssimo, raspo a palma (da mão) na testa, encosto o dedão no lado direito e percorro os outros quatro dedos para a esquerda Lambuzo os curtos cabelos soltos do meu rabo de cavalo malfeito. Certa de que não preciso dizer "da mão". É essa que brilha enquanto a outra põe em cor o que minha cabeça já não suporta esquecer em prol daquilo que preciso escrever pra receber o soldo porque fazer o que faço agora não merece encher minha barriga me garantir sustento e moradia. Faz calor como quando trabalho com o texto de outra pessoa. Meu suvaco me conta de pertinho quase
ridícula como sempre fui escrevi depoimentos em rede social mandei os tais dos scraps criei gif, que se diz jif e não guif me pus em cartas e recados perfumados te pichei as paredes e o guarda-roupas pra que me guardasse em você em mim, até seus os ouvidos e sua orelha pregada em meu peito não dá pra devolver botar uma outra numeração no lugar chamei atenção e mandei até emojis apaixonados e você se mandou 21 de janeiro de 2017  ·  (i.)