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Dom Barquinho


Era um barquinho de papel. Bento sentiu grande curiosidade e se abaixou para pegá-lo. Observou com atenção toda a informação contida nele. Palavras que formavam frases de amor.
 Bento tinha 19 anos, nunca tivera um grande amor. Se encantava por algumas garotas, mas nunca se apaixonou. No entanto, com a menina do barquinho, foi diferente. Sua letra longilínea era linda, limpa e suave. E ele até podia sentir o cheiro que suas mãos tinham... flores! Ah! mãos que escreveram e fizeram o barquinho.
 Se apaixonou pelo desconhecido. Pelo incerto. Era um sentimento incrível! Como nunca o sentira antes? E ao longo de um mês, este interminável, procurou por ela sem cessar. Não encontrou. Não fazia ideia da cor de seus cabelos, de seus olhos, menos ainda de sua pele e não sabia nem qual seria a sua altura.
 Tomou para a sua vida o barquinho. Tinha sonhos com alguém que não conhecia, dando-lhe aquela dobradura de papel. Sonhava com o enlace dos braços de ninguém. Ora negros, ora brancos, ora amarelos e outrora mulatos.
 Percebeu que o amor existia, mas era indefinido, desprovido de face. Então, numa tarde ao chegar em casa, deita-se em sua cama e lamenta-se. Pega no sono. “Bento...”, sonhou: “Bentinho! Desperta!”. Acordou de repente, com tremores. Pensou a respeito daquilo.
 Fora seu barquinho que o chamara, dizendo-lhe que ele estava caindo de amores por alguém que escreveu os versos para outro. Versos de amor para outro.
 Só foi perceber que a vida reproduziu em verdade o romance criado por Machado de Assis. Não exatamente como foi escrito, mas era Bento e sentia-se traído pela amada. Amada que dedicara versos a um outro rapaz. Desconhecido, claro, mas era outro amor.
 Bento não se tornara casmurro, só que nunca acreditou na inocência da amada do barquinho. Não se desfez dele, e cria também que talvez valesse mais amar aquele origami falante de seus sonhos, do que a Capitu que o criou.


16/10/14
Isabella dos Santos Lima

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