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Todo dia alguém diferente morria. Não tinha como. É o principal acontecimento daquele ambiente completamente impossível de ser evitado. No início a Márcia se condolecia toda e das primeiras vezes até tivera vontade de chorar, mas se controlara. Também por vezes, para não reagir tão facilmente às emoções que os vários clientes, ou pacientes, como queiram chamar, sentiam, ela fingia não ouvir.

Parece besta né, mas cês já repararam
a vida da gente é frágil: uma hora tá 
bem, atravessando a rua 
pra comprar um café e 
no dia seguinte precisa de um parente pra voltar no hospital 
só pra pegar um documento que comprove em vida a perda dela 
óbito 

Digo, óbvio. A gente põe reparo em uns assuntos que, na verdade, parecem nem requerer tanto. Foi assim que o Pedro se deu conta de que a porta de correr não abria com um sensor no chão, que detectasse o peso, mas com um acima da porta que percebia por infravermelho o corpo, uma movimentação por calor. Caso esse sensor falhasse ele deveria apertar o botão à esquerda da porta. Por não alcançá-lo, continuava pulando em frente a ela. 

Já tentei por tudo e qualquer coisa 
fosse meramente mais fácil mas parece 
não enxergo nem aquilo que é mais prático 

Parecia difícil demais lidar com o correr do dia. Era uma balinha de côco atrás da outra mesmo depois de se dar conta de que aquela última que provara, que pegou em cima dum monte de livros em sua casa, tinha estranhamente o gosto do cheiro de seu quarto. Um bom cheiro, mas um péssimo sabor pra uma bala de côco. E ela sabia, não era pior do que a sensação de ver um grupo de filhas escolhendo batom pra mãe. 

Pode passar maquiagem e batom vermelho que ela gosta 
Mas nos ajuda a escolher a roupa, moço 
Queremos que passe uma imagem de paz 

Assim escolheram a roupa branquinha. A Márcia saia todos os dias da mesa à direita da porta única de entrada (e de saída) para ir ao banheiro. Pontualmente às onze horas e nove minutos. Se tardasse, não passava de um minuto e meio. Naquela hora, que não quer dizer hora propriamente, mas momento e não menos que isso, se levantou antes segurando o rímel. Passou pelo lado contrário ao da porta. 

Sabe? Esse povo todo vem aqui e quase toda semana 
Será que não vê que vira hábito 
e pode virar uma doença ou coisa 
assim 

Era isso, o Pedro sofria, então, de uma doença incontrolável e não conseguia entender, mais burro que um macaco, que havia um botão pra abrir a porta que ele sequer sairia. 

Que porta idiota 
desfuncional 
se precisasse sair depressa morria todo mundo aqui 
Quem era, então, que cuidaria da imagem póstuma se a cara, em vida, já era hipocondríaca? 

– Não, moça. Obrigada, quem gostava de musse de maracujá com chocolate era a outra atendente. 


(Isali - Julho de 2018 - 21 de Fevereiro de 2019)

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