Mais bonita que ela, só a capa do livro que ela lia.
Todo dia no mesmo banco, fugindo do sol e, justo hoje, me passou os olhos, quando eu nem por mim respondia. Como sempre busquei por respostas, não tê-las me incomoda. Irrita como o cartão verde-limão que não sei de qual banco é. Ou se é de crédito. Nem mesmo se verde é a cor, porque o nível baixo não avançado de daltonismo me confunde pra amarelo e me impacienta, que me impede de ser quando se trata se cores. Mas apascenta pensar em todas essas possíveis realizações quando percebo que desfoco o olhar no objeto. Dessa forma, mesmo sem conhecê-la, eu me sentia ignorada. Vejam: ignorada e não inotada, do verbo “não-notar”. Tantos sinais eu dava e ela simplesmente fazia que não via meus olhos nela.
Afinal, a gente sabe que o olho do Outro, em nós, pesa o peso nos ombros.
Não sabia o seu nome, sua idade... Provavelmente trabalhava... nessa vida sempre vamos atrás de mais dinheiro pra gastar com o que não precisamos, aonde trabalhava ou mesmo se estudava. Eu, terminando mais uma graduação, com quase total inconformismo e irrealização com meu primeiro curso, imaginava qual seria a profissão dela. Pensava sobre o futuro dela bem mais do que no meu. Imaginava diálogos. Entrega. No entanto, me frustrava quando o ônibus freiava. Tamanha agressão auditiva não poderia ser causada por pastilhas de freios gastas.
Quem elocubra início se o barulho remete ao fim?
Era evidente que ela, que fazia coisas que eu tanto admirava quanto aquelas que me impressionavam por senti-la tão assustadoramente fria, inerte a tudo que eu sentia e a toda declaração de amor e a toda paixão que eu tinha a dar praquele corpo desalmado, também sentia os beijos, o meu toque. Ainda que só a imagem deles.
Ensaiei levantar e ficar ao lado dela, que talvez pudesse descer com ela, no mesmo ponto, e querer saber onde era a Rua 3. Afinal, qualquer pessoa pode não saber um caminho mesmo morando naquele lugar como pode puxar assunto. Ao invés disso, continuei a soslaiá-la.
Seria mesmo absurdo perder uma viagem conversando o óbvio.
Atravessando minha utopia, Zinha desceu na parada de sempre e, não fosse por ter esperado o ônibus passar para chegar ao outro lado da rua, contrário do que sempre fazia: caminhar até onde eu conseguia notar, pela janela, diria que, finalmente, ela me encarou nos olhos. Quase me constrangi. Pra ela, essa moça que me causa um diário lamento sôfrego, chamo amorzinha. Apesar da baixa estatura, era gigante, e o diminutivo, de longe, foi o pouco do carinho que eu senti por ela. De ego, cabia dois num só. E eu admirava, se ainda não admiro, aquela capacidade de saber que é boa. Com esse saber e todo conhecimento de si, faltava-lhe, sei lá, humildade. E eu, que era exatamente complementar-oposta a ela, continuava amando aquela nesga de músculos, compilação de inteligência e, o que agora mesmo, escrevendo isso, me põe abaixo, o que o cheiro dela me causava.
Um mar inteiro de alfazema morava em seu estômago.
Isso eu só tive consciência depois de ela se sentar no banco ao meu lado. No dia que seguiu, postei em uma rede social que estava apaixonada por uma completa desconhecida e, para minha surpresa, dessa vez, ela seguiu viagem até o meu ponto. Poderia ter sido alguém que contou para ela das minhas observações quase discretas? Ou ela mesma teria percebido o clique que tirei dela, quando de costas? Tão logo pude, desci antes dela e fingi não desejar conhecê-la, e ali, caminhando rápido mas com relativa despretensão, me fez Psiu e correu para me acompanhar. Perguntou meu nome sorrindo e me olhando nos olhos, fundo. Assustada com a confiança dela em falar comigo, respondi assustada. Tinha acabado, então, todo o suspense. Agora eu não mais admiraria um cabelo, os braços, corpo e os óculos sem nome. Nós nos conhecíamos agora. E ela sumiu durante um mês. Não sei, talvez eu tivesse me precipitado. Talvez ela nunca tivesse pegado o ônibus tantas vezes quanto eu achei que tivesse.
A gente sente mesmo falta das coisas porque põe nelas reparo.
Deitada, assim, sem me decidir se ponho ou não o dedo, a questionar-me a pelagem, que sempre faço questões a sinonimar perguntas e variadas indagações, noto que o avanço das horas, minimamente, permitiria, se estivesse com alguém real, que me comesse. Começaria e terminaria com vontade e adoraria também o cheiro dos meus cabelos como dos meus lábios e das axilas, porque nenhum ninguém vai me livrar do inferno, esse meu cérebro, a amar minha boceta e os encontros que ela me propõe e me faz dela escrava.
Seu engano seria pensar que não dizer nada apagaria o sentimento com que a colori.
Foi o que lhe disse quando ela retornou à rotina e continuou por me deixar imobilizada, muda. Mas sequer foi capaz de me explicar o por quê do sumiço. Depois de anos juntas, Zinha não gostou de saber que em mim, ainda havia uma porcentagem que sonhava com mais alguém mesmo depois de contar e sonhar, sozinha, tudo o que um dia quase vivemos. As músicas compartilhadas como as roupas que permeavam o casal, os abraços e beijos sob o risco do jugo.
Era assim, então, o conhecimento puro das coisas?
A oportunidade que tive de ser dona de mim foi aquela. Ninguém nunca previu, profetizou ou proferiu, que eu fizesse aquilo. Sobretudo, não entenderiam como chocolates, cafés-da-manhã na cama, carinhos, afagos e mais, a fala indignada de Eu te amo, só você ainda não percebeu, de uns meses atrás, se transformaram, de uma semana pra outra, na ilógica irritação. Finalmente eu vivia a possibilidade de uma mulher, para além de sexo, na compreensão do invivido.
Zinha ignoraria o que eu dissesse sobre nós: a falta.
Eu, que era mais complemento de mim, quando morri, me tive. Quebrei tudo quanto elocubraram antes sobre a minha possível vida próspera e superestimada condição financeira. Acabei também com o que diziam sobre vida amorosa e alguém que eu teria e que de fato me respeitasse. Morri e nada teve tanto gosto como a bala, na amígdala, que entrou pela têmpora esquerda.
Lado que tanto me doía a cabeça, que me guiava politicamente e amparava o tremor do outro.
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