01 de março / 12 de julho / 04 de setembro / 09 se setembro de 2020
qual amor sobrevive a cinquenta por cento do pulmão comprometido?
Meço a infância pelas palavras aprendidas. O meu primo, três meses mais velho que eu, aprendeu a fazer o número oito. O meu ainda seguia meio torto, disforme. Mais tarde soube que a forma como escrevíamos diferia, por isso o seu traço era redondo. Bolinha em cima
bolinha em baixo
"oito perfeito". Já "iniciar da beira
para cruzar as linhas (em infinito)
sempre foi mais elaborado". Diria quem pegava minha mão e traçava, linha a linha, o formato que teria
a minha escrita.
Ainda que religiosa, cristianíssima, segue sempre de superstições, mas mais porque são também senso comum. Apesar de eu até hoje não me incomodar em desejar
a morte de uns e outros pois sabia
: "desejos não são garantidos, minha filha". Num intervalo entre uma e outra atividade da escolinha, minha avó saía pra mexer as panelas e eu ia, contando buraquinho por buraquinho, dos fios
muito bem trançados,
naquela cadeira à ponta da mesa. Uma grande, dessas que se abrem e quando acrescenta nela uma tábua
que se guarda dentro dela,
ela se enorma ainda mais. Às vezes queria sair, me esconder por ali de baixo, pra ela fingir que não me via. Mas também, vez e outra, eu temia que esses espaços entre os fios, prendessem pra sempre o toquinho do meu dedo e ela precisasse chamar meu avô, porque, sim,
só ele,
teria coragem de me salvar. Não porque fosse mau, ou porque me amasse mais,
era tão somente porque ele haveria de ter foças pra me segurar
e cortar as tiras meio que de nylon, que me prendiam. Afinal, eu nunca esqueci do dia no qual a minha mãe pisou num espinho
grande demais, de limão, e pra livrar ela de qualquer infecção
meu avô quem fez a incisão.
A gente, até onde eu sei, nunca teve "trem demais"
o maior bem sempre foi ela e o maior bem dela sempre foi ele.
Ela me buscava todo dia, até quando finalmente nos mudamos dali pra onde não me recordo mais,
pra minha outra avó me pegar e me acompanhar nas leituras
extensas e enroladíssimas
tarde à tarde
até que minha mãe chegasse pra irmos pra casa. Ano após ano, eu agora com vinte e cinco, aprendi a falar de mim no plural, porque sempre incluo meu irmão no que tange a nossa infância. Minha avó rememora sempre que pode, comigo, o que eu disse quando criança
as intermitências das marretadas que um dos funcionários da oficina mecânica fazia ao desamassar os carros
o pedido de paciência, em desespero, pra molhar meu bico antes de servir refrigerante ao meu irmão
o grito de socorro por papel nogênico, no banheiro
e a fala decepcionada com o fim da minha família, isso por volta dos meus três anos de idade. Pra além de acreditar em mim, ela também sempre espera demais de mim. Possível transferência.
sonhei com dente
minha amiga dizia da cárie e da maior presença
em mim
Minha avó, da morte.
fato que acordei calejada
na boca, como quando adolescente
: o braquete feria minha bochecha
esquerda, parecendo sonhar com bala
dura
Mas foi ela quem me ensinou, isso era, "morder a boca em sono".
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